Desmentido do presidente ao ministro e novo e ataque ao parceiro recebe resposta da China .Apaziguador tá off. Não durou muito tempo o cosplay de apaziguador e "construtor de pontes" de Jair Bolsonaro. Bastou a popularidade subir um pouquinho para o presidente se sentir à vontade para voltar ao papel de dinamitador de qualquer diálogo que sempre desempenhou, desde o Exército. Desta vez a vítima foi o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde.
Patentes. São muitas as camadas de mais um episódio de completo desrespeito de Bolsonaro para com seus assessores mais próximos. Uma delas diz respeito a uma característica primordial deste governo: a militarização dos cargos civis. Uma das anomalias desse fenômeno é justamente esta, de um general do Exército se ver humilhado desta maneira pelo presidente da República, passando um sinal péssimo para a sociedade e para a caserna, ao mesmo tempo.
Dinamite. Quando os políticos passaram a vender a conversa mole de que Bolsonaro havia compreendido que precisaria compor consensos e blablablá, e parte da imprensa e da Faria Lima compraram, escrevi na coluna de 11 de outubro passado no Estadão: "Bolsonaro tem por figuras como Renan Calheiros, Toffoli, Gilmar Mendes, Kassio Nunes e Ciro Nogueira o mesmo apreço que por Sérgio Moro, Gustavo Bebianno, general Santos Cruz, Luciano Bivar, Joice Hasselmann, Alexandre Frota, Paulo Guedes, Bia Kicis, Carla Zambelli ou Jorge Oliveira: nenhum. Assim como já fez com vários desta lista, pode descartar os demais se disso depender sua sobrevivência e a dos seus". Pazuello não estava na lista, mas a lógica, por óbvio, se aplicava também a ele. Tá aí.
Bola cantada. Na terça-feira, diante do surpreendente anúncio de que seriam compradas 46 milhões de dose da Coronavac, produzida no laboratório Butantan em parceria com a chinesa Sinovac e outros investidores, escrevi, também no Estadão: "Resta saber se também o ministro não será admoestado pelo chefe a recuar, se o Tânatos e os delírios persecutórios decorrentes dele apontarem que ele está jogando a favor de seus adversários". Não demorou 12 horas.
Não precisa ser vidente. Com isso eu quero dizer ao leitor do BRP que sou uma espécie de vidente do bolsonarismo? Longe disso. Apenas que para alguém que acompanha política e Bolsonaro há muito tempo não há que se empregar categorias políticas sofisticadas, condescendência ou crença num mínimo de racionalidade na hora de analisar suas ações e crenças. Elas sempre vão se basear nos interesses próprios e de sua família (coluna de 11 de outubro) e serão invariavelmente movidas pelo Tânatos, a pulsão de morte descrita por Freud (coluna desta quarta-feira).
E agora? Agora mais uma crise institucional está colocada, por birra do presidente, como sempre. Os governadores, interessados em ter ajuda do Ministério da Saúde para que seus Estados recebam a vacina assim que sua eficácia e segurança forem comprovadas pelos testes científicos, se veem presos a uma briga ridícula e paranoica em que Bolsonaro vê João Doria como uma espécie de emissário da China para forçar os brasileiros a se vacinarem com uma substância perigosa. Sabe-se lá que enredo de 007 passa pela cabeça de alguém capaz de fazer tamanha lambança com os entes federados, a população e o principal parceiro comercial do Brasil de uma vez só e no curso de uma eleição e uma pandemia.
Novo recuo? Caso os governadores, o Ministério Público e a própria Anvisa decidam se insubordinar a tamanha loucura (não devemos contar com Pazuello para isso), Bolsonaro talvez tenha de recuar. É uma briga muito grande para comprar, ainda mais porque, noves fora os malucos terraplanistas, a grande maioria das pessoas espera ansiosamente por uma vacina que se mostre segura e eficaz (ainda que não 100% eficaz, como são vacinas de vírus com as características do Sars-Cov-2, e não necessariamente eficazes em uma única dose) para que a vida (pessoal, familiar, social, econômica, profissional, de lazer) retome alguma normalidade.
Riscos. Se insistir em dar murro em ponta de faca, Bolsonaro pode voltar ao isolamento no qual estava se colocando até ser socorrido por Fábio Faria e pelo centrão. E isso implica em ter o Supremo Tribunal Federal, com ou sem Kássio Nunes, que nesta quarta-feira foi aprovado com tranquilidade na CCJ e no plenário do Senado para a vaga de Celso de Mello, por lá. Ele que não se esqueça de que Alexandre de Moraes agora é também relator do inquérito das acusações de Moro, e que o ministro até aqui não participou dos convescotes da ala Toffoli-Gilmar para amaciar para o presidente anti-establishment.
E o ministro? Por incrível que pareça, neste momento Pazuello pode estar achando que não é má ideia tirar uns dias para convalescer de covid-19 -- ele testou positivo para a doença. Isso porque é tempo suficiente para que as vozes na cabeça do presidente, que vêm da família e das pantanosas redes sociais bolsonaristas, parem com os ataques virulentos a ele, e que vídeos como o que mostra seu ótimo relacionamento com Doria saiam de cartaz. Ele terá de submergir e parar de querer "aparecer", verbo que Bolsonaro usa para ministros da Saúde que tentam fazer seu trabalho no curso de uma pandemia. Deve topar o preço, mais uma humilhação para um general num governo em que, a pretexto de prestigiar os militares, os usa como buchas de canhão.