Na eleição presidencial de 2010, Marina Silva era uma terceira força ofuscada por uma disputa polarizada entre Dilma Rousseff e José Serra. Só na reta final, a ainda senadora surgiu com dois dígitos das intenções de voto. No entanto, quando a apuração se encerrou, veio a grande surpresa: a candidata do PV havia conquistado quase 20% dos votos válidos.
Era a deixa para o segundo turno se focar em uma agenda religiosa, com direito a santinhos de Serra falando em fé, e a inusitados membros da bancada da Bíblia, como Eduardo Cunha, pedindo votos a Dilma. Desde então, o Brasil se assumiu como um paradoxo Estado laico onde os candidatos mais votados precisam colocar Deus acima de todos.
E tem sido assim na eleição deste ano, mesmo que alguns dos nomes preferidos do eleitorado mais religioso estejam amargando derrotas.
Em Recife, panfletos apócrifos dizem que “cristão de verdade” não vota em Marília Arraes. Em São Paulo, a campanha se iniciou com uma confusão tão barulhenta entre Arthur do Val e o Padre Júlio Lancelotti que até o Papa Francisco prestou solidariedade ao companheiro de fé.
Ainda na capital paulista, Brunos Covas, candidato do PSDB, assumiu o lema “força, foco e fé“. No Rio de Janeiro, Benedita da Silva, candidata do PT, repetia que “bota fé que dá“. E Eduardo Paes, que caminha para derrotar o Marcelo Crivella no segundo turno, encontrou uma expressão bíblica para carimbar o bispo da Igreja Universal de perigoso.
O pai da mentira continua espalhando fake news! Assiste aí! Crivela Nunca Mais!!!! pic.twitter.com/zrxRqZqUXc
— Eduardo Paes (@eduardopaes_) November 20, 2020
“Pai da mentira” é como Jesus Cristo se refere ao diabo no capítulo 8 do livro de João, exatamente doze versículos após o trecho que Jair Bolsonaro adora evocar: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará“.
Até Guilherme Boulos, que fala por uma esquerda que costuma ter na fé um obstáculo para se chegar ao poder, vem tendo cuidados extras. Ainda no primeiro turno, destacou a necessidade de diálogo com o eleitor evangélico. Já no segundo, soltou um vídeo negando que haja antissemitismo na defesa que faz dos direitos dos palestinos.
Diálogo com evangélicos. #ViraSP50 pic.twitter.com/TwgdIpvaOS
— Guilherme Boulos 50 (@GuilhermeBoulos) November 13, 2020
O que é curioso. Pois, no primeiro turno, Boulos foi o candidato mais votado em Higienópolis, bairro onde se concentra a comunidade judaica de São Paulo. Nas redes sociais, contudo, os Judeus Pela Democracia reclamam que os judeus que declararam voto em Boulos vêm sendo chamados de “kapo”. Como os próprios militantes informam, “Kapos eram os prisioneiros dos campos de concentração que auxiliavam os nazistas, supervisionando e denunciando o trabalho de outros prisioneiros. Hoje, o termo virou sinônimo de traidor“. Por motivos óbvios, é uma ofensa extremamente pesada.
A polêmica não tem atingido os assuntos mais quentes das redes sociais. Mas o razoável alcance de um vídeo em que judeus assumem o voto no candidato do PSOL deixa a sensação de que a discussão, diferente da eleição, ainda está longe do fim.
Judeus e judias paulistanxs com @GuilhermeBoulos/@luizaerundina denunciam a manobra de parte da comunidade judaica de enquadrar Boulos como antissemita. Veja aqui o depoimento de judeus e judias com Boulos! pic.twitter.com/R9D09ydRMO
— Raquel Rolnik (@raquelrolnik) November 21, 2020